Essa é a história de um cachorro chamado Bob. Ele era um fiapo de manga desde quando esse termo nem estava na moda e vivia numa rua perto do meu trabalho. Sim, Bob era e vivia. No passado. Adianto que ele já cruzou a ponte do arco-íris. Mas não sem antes tocar lá no fundo do meu coração e me fazer viver uma das experiências mais marcantes da minha vida.
Demorei a escrever esse texto. Relutei, confesso. Não sabia exatamente qual enfoque dar, que caminho seguir. Acho que eu tinha medo de não conseguir transmitir o significado que esse cachorro teve na minha vida, o quanto ele me marcou. Mas eis que chegou a hora. Vale a pena conhecer Bob, um viralata de pelos arrepiados na cor amarelo claro, cerca de 10kg, topete inconfundível e olhos demasiadamente expressivos. E ele merece esta singela homenagem.

Como eu disse, aquele cachorro amarelo de quem eu ainda não sabia o nome vivia numa rua pela qual eu passava diariamente, ida e volta do trabalho. Sempre o via perambulando por lá, frequentemente acompanhado de duas viralatas fêmeas. Eu via aqueles cães no sol quente, revirando lixos, andando em meio aos carros. E a cada dia, crescia meu desejo de fazer algo por eles.
Porém, comprometida com outra cachorra, cujo resgate estava sob minha responsabilidade, eu adiei por meses a ajuda que aqueles três precisavam. Nesse tempo, descobri que eles tinham donos e casa. Mas eram pessoas muito pobres, que mal tinham para si, e com o hábito de abrir o portão para os cachorros passarem o dia soltos. À noite, eles dormiam do lado de dentro.
O estalo veio quando eu me aproximei de Bob o bastante para notar feridas em volta de seus olhos tristes. Somado a seu estado geral, imediatamente associei aquele sinal à doença leishmaniose, e vi que não podia mais postergar minha ação.
So here we are
The witching hour
(Então, aqui estamos
A hora da mudança)

Mobilizei pessoas e recursos e levei os três cachorros para consulta e exames. A doença de Bob foi confirmada. Castrei os três e devolvi as fêmeas à família. Mas Bob, esse não podia voltar para aquelas condições; ou logo morreria desamparado. Expliquei a situação aos donos, que me permitiram levá-lo para ser tratado com a condição de ser devolvido tão logo terminasse o tratamento.
Assim o fiz. Levei Bob para um lar temporário pago que eu já conhecia. Ele fez tratamento e revigorou. Aqueles três meses sendo cuidado e amado transformaram Bob em outro cachorro. Um animal envelhecido pelas ruas, maltratado pelo abandono e com as dores do mundo nas costas rejuvenesceu, literalmente voltou a sorrir e ganhou brilho nos olhos.
I fell apart
But got back up again
(Eu desmoronei
Mas me ergui novamente)

Mas como era o trato, tive que devolvê-lo aos donos após o tratamento. Não podia simplesmente sumir com o cachorro, pois eu tinha que passar por aquela rua todo dia e não tinha como eles não me verem. Com muito pesar no coração, entreguei Bob à família, lindo e bem tratado.
No entanto, de volta à situação anterior, em pouquíssimo tempo, Bob estava pior do que quando o encontrei pela primeira vez. Fiquei arrasada e indignada. Bob não iria melhorar vivendo naquelas condições. Com uma doença sem cura, mas com tratamento, ele poderia viver bem. Mas, para isso, precisava ser retirado dali e, dessa vez, para nunca mais voltar.
Com ajuda de amigas, consegui explicar à família sobre o estado delicado do animal e a impossibilidade de mantê-lo na rua daquele jeito. Foi assim que Bob retornou ao lar temporário e aos cuidados de que tanto precisava. Ele voltou a melhorar e muito. Estava abrigado e seguro, recebia medicação para seus sintomas, tinha alimentação adequada todos os dias e a atenção de pessoas que cuidavam dele. Ele voltou a ser feliz.
Não foi fácil, porém. Sua doença era grave e ele tinha recaídas frequentes. Uma das mais críticas foi quando Bob perdeu as forças nas patas para se levantar sozinho e caminhar. Problemas articulares também são causados pela leishmaniose. Ele não perdeu os movimentos, mas sua dor era tamanha que não conseguia se sustentar em pé. Chegou a precisar usar fralda. Mas depois, mesmo com dificuldade, conseguiu voltar a se locomover sozinho.

Era difícil manter Bob estável. A leishmaniose é uma doença cuja carga parasitária pode ser mantida baixa, e os sintomas, controlados e até zerados. Já vi cachorros viverem por anos com esta doença e ficarem bem. Bob, porém, ela pegou de jeito.
Então foi assim: Bob recebia cuidados e melhorava outra vez. Mas algum tempo depois, estava novamente todo descompensado pela leishmaniose, que atacava principalmente seus rins. Até que chegou a necessidade de ser internado. Depois de alguns dias, mais uma vez, Bob mostrou toda sua vontade de viver e ele se reergueu. Era bom nisso.
And then I fell apart
But got back up again
(E então eu desmoronei
Mas me reergui)

Aqui eu preciso fazer um parêntese para dizer que, embora eu fosse a responsável por Bob, no quesito financeiro, eu não podia assumir tudo sozinha e, felizmente, tive muita ajuda nesse percurso. Por isso, agradeço sobretudo às madrinhas, que doavam mensalmente para garantir seus cuidados, mas também a tantas outras pessoas que fizeram doações pontuais.
Entre altos e baixos, exatamente um ano depois da primeira internação, Bob teve uma piora que o levou de volta para o hospital. Dessa vez, o quadro dele era mais grave ainda, seus rins estavam quase parando, e foi necessário até transfusão sanguínea.
Apesar de seu estado debilitado, eu acreditava que Bob sairia dessa mais uma vez. Eu não estava pronta para vê-lo partir e tinha fé que ele se restabeleceria novamente. Mas não foi o que aconteceu. Dessa vez, Bob partiu. Ele disse adeus a seu corpo cansado e judiado pelos anos de invisibilidade. Ele resolveu que era hora de descansar. E merecia isso.
We both could see
Crystal clear that the inevitable end was near
(Nós dois podíamos ver
Claramente, que o inevitável fim estava próximo)

Eu, claro, fiquei de coração partido. Desolada e tomada pela culpa, só conseguia pensar no que não fiz por Bob. Mas, não, não foi Bob que partiu meu coração. Os cachorros não partem nossos corações, eles jamais fariam isso.
O que partiu meu coração foi não poder ficar mais tempo com ele, foi ter que deixar para trás o sonho de vê-lo cheio de vida e energia, apenas sendo cachorro, sem ter que aguentar tanta coisa. Porque Bob aguentou viu? Foram quase três anos lutando bravamente para ficar estável. Isso sem contar o tempo antes do resgate.

A cada queda, ele se reerguia. Esse verbo, reerguer, descreve perfeitamente Bob. E eu sempre fazia questão de dizer “Bob se reergueu”. Talvez por isso eu tenha elegido a canção “Alibi”, de Thirty Seconds to Mars, como trilha sonora de nossa história – é dela os trechos que distribuí pelo texto.
Por mais que nosso entendimento terreno queira dizer que, da última vez, Bob não conseguiu se reerguer, eu posso afirmar que ele se reergueu, sim. Ele se elevou à condição de anjo (mesmo considerando que ele já era um) e pode voltar a viver plenamente a pureza de seu espírito. É isso que os animais fazem quando morrem.
Eu chorei, chorei muito. Me culpei, me revoltei. Queria voltar no tempo, queria fazer diferente, fazer mais. Mas não podia. Era tarde para mim.
Será que foi tarde para Bob também? Quantos anos ele conviveu com aquela doença antes que eu cruzasse seu caminho? Eu gostaria de contar um pouco mais sobre Bob além dos seus últimos anos de vida. Quantas ruas ele percorreu, quão longe foi de casa. Os perigos que enfrentou, as maldades das quais fugiu. O sol, a chuva. A solidão e a companhia de outros cães errantes. Quando ele decidiu não mais se afastar tanto daquela casa que não era exatamente um lar? Quantos anos ele tinha? Foi adotado filhote ou chegou ali adulto?
No alibi! (Sem álibi!)
O que eu posso dizer é que Bob era um cachorro muito bonzinho, extremamente dócil, calmo, cheio de doçura e boa praça. Quase nada o tirava do sério. Interagia bem com outros cães e com gatos. Tinha um olhar marcante – que eu chamava de olhar comprido -, impossível de esquecer. Gostava de carinho e se deixava manusear tranquilamente, como no banho ou nas consultas e exames. E tinha uma resiliência que, arrisco dizer, só os cães têm. Só fazia um grande drama para cortar as unhas. Aí ele gritava alto. Como um cachorro que suportava uma doença tão devastadora não aguentava cortar as unhas? Eu me pergunto aos risos.

À certa altura da doença, os pelos de Bob caíram e não cresceram mais como antes, o que descaracterizou um pouco seu estilo fiapo de manga. Mas o topete, que era seu charme e marca registrada, esse se manteve inalterado.
Nos últimos meses de vida, seu corpinho estava abaulado pelas medicações, e suas patas, afinadas pela perda muscular. Mas seu olhar sereno e profundo continuou o mesmo daquele quando o resgatei com olhos feridos. Não mais tristes, mas sábios. Como um oráculo, parecia que aqueles olhos guardavam um profundo e enigmático conhecimento da vida. Eram realmente a janela de sua alma.

Depois de um tempo da morte de Bob, entendi algumas coisas. E acho que é por isso que dizem que “o tempo cura tudo”. O tempo não necessariamente cura, mas nos ajuda na compreensão de várias coisas. Percebi que eu tirei Bob do abandono. Para ele, o lugar onde estava não era um lar temporário. Era apenas um lar, a casa dele. E as pessoas que cuidavam dele eram a família que ele não teve antes. E isso era tudo. A euforia de querer fazer por Bob o que eu não podia me impediu de enxergar o que eu já havia feito.
Em março agora, fez três anos que Bobinho, como eu sempre o chamava, morreu. Às vezes, a notícia da sua morte, naquela manhã de sexta-feira, 18 de março de 2022, ainda ecoa na minha mente. E as lembranças do que vivemos juntos me deixam um nó na garganta – se eu ouvir nossa música, então! Um misto eterno de saudade e gratidão.
Seu olhar tão cheio de significado e ao mesmo tempo intrigante penetrou no fundo da minha alma, e a transformação que me causou, eu vou levar na minha centelha divina neste ou noutro plano. Sou grata pelo nosso encontro. Você resplandeceu sob meus olhos, Bob, e eu nunca mais vi a vida do mesmo jeito.
