Zoé, a primeira border collie cão-guia do Brasil

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O que vem à sua mente quando se fala em cão-guia? Aposto que você imagina um labrador amarelo, não é mesmo? E não é à toa. É muito comum, principalmente no Brasil, que essa raça seja utilizada para guiar pessoas com deficiência visual.

Mas se eu lhe disser que existe cão-guia da raça border collie também? Para ser mais específica, existe uma cadela border collie cão-guia e ela é a primeira e única da raça a receber esse papel aqui no país. O nome dela é Zoé e vive em Aracaju (SE) com sua condutora Jéssica.

Zoé, a border collie cão-guia do Brasil

Zoé chama a atenção por onde passa. E não é para menos. Linda, exuberante e ainda exercendo função tão importante. Todos ficam curiosos para saber como essa história aconteceu.

E quem conta é Jéssica Vieira, jornalista e servidora pública, que há quatro anos divide seu apartamento e sua vida com a encantadora Zoé.

Jéssica tem uma deficiência visual provocada por toxoplasmose congênita que afetou a retina nos dois olhos, comprometendo totalmente a visão central. Embora fosse esperado que ela não enxergasse nada, Jéssica possui visão periférica e, contrariando o que a medicina até hoje é capaz de explicar, ela consegue fazer coisas e ter habilidades extraordinárias para sua condição.

Hoje, a jovem tem 10% de visão já com a correção dos 21 graus de miopia. Significa que ela consegue enxergar luzes e formas, consegue ler e fazer uma série de coisas que a tornam independente, mas, como ela mesma diz “só que não como uma pessoa que tem 100% da visão. Eu não sei explicar como é, não sei fazer comparações, porque eu já nasci assim, então os meus 10% são os meus 100%”.

Como sempre foi ativa e exploradora, Jéssica viveu boa parte de sua vida sem ajuda de um cachorro. Quando decidiu que gostaria de ter um, foi alertada por seu médico oftalmologista que considerasse um cão tão ativo quanto ela. “Ele disse que cães calmos me ajudariam na mobilidade, mas não muito em exercícios visuais. Um cão que não me fizesse trabalhar poderia tirar minha autonomia, conquistada ao longo da vida, lendo, estudando, viajando, fazendo as coisas sozinha”, explica.

A escolha

Por onde passa, Jéssica chama a atenção com sua cão-guia

O cão-guia é uma tecnologia assistiva para pessoas com deficiência visual, não exclusivamente para pessoas completamente cegas. No Brasil, é muito comum que as raças labrador e golden retriever sejam utilizadas para desempenhar a função de guia. Mas Jéssica já sabia que essas raças não se encaixariam na sua rotina. Segundo a jornalista, em outros países, é normal encontrar pastor alemão (no Brasil, há somente 4, vindos de canis estrangeiros), border collie, bernese e até mesmo viralatas exercendo essa função.

Quando Jéssica optou pelo border collie e encontrou um canil sério e que trabalha com reforço positivo, ela chegou até a filhote Zoé. Por causa da pandemia, a própria condutora teve que ser treinada para fazer a socialização da cachorra, com o acompanhamento à distância do treinador de cão-guia de São Paulo (em Aracaju não tem). Jéssica foi, portanto, a família socializadora e a treinadora de Zoé, e tomou tanto gosto pela área que já fez vários cursos.

No nosso país, o cão-guia pode ser treinado por escolas específicas (ONGs e institutos federais) ou por profissionais autônomos. Após o treinamento, o cachorro passa a ter carteirinha de certificação com dados próprios e dados do certificador. No caso de Zoé, ela foi treinada por Jéssica, que se tornou instrutora de cão de assistência e certificou a própria cachorra.

Para Jéssica, o fato de morar em uma cidade plana e calma, facilitando o treinamento dessa raça, que está sempre atenta a muitos estímulos, também colaborou para tal escolha.

“Acho que para pessoas com baixa visão, como eu, é possível (ter um border collie como cão-guia). Para pessoas cegas, acho complicado, porque o border demanda muita atenção e os cães de pastoreio fazem muitas conexões com o olhar.”

Socialização

A socialização de cães de assistência (inclusive o cão-guia) deve expor o animal ao máximo possível de lugares, pessoas e situações diversas, de forma gradativa e controlada, com o objetivo de naturalizar a convivência e o pertencimento do cachorro a essa diversidade de contextos.

O bem-estar do animal sempre deve ser priorizado e não é permitido colocar o cão-guia em risco.

De acordo com Jéssica, de dois até cerca de 16 meses de idade, é o período de apresentar o cão às mais diversas situações para que no futuro ele esteja bem habituado. “Zoé, por exemplo, nunca andou de metrô, mas já andou de ônibus e de avião. Então, quando isso acontecer, embora seja uma novidade, ela já terá bagagem para se sentir confortável.”

Outra situação nova pela qual Zoé passou recentemente foi ver pessoas penduradas na janela de seu apartamento (trabalhadores pintando o prédio). Apesar do estranhamento, a cachorra não reagiu nervosa ou afoita. “Mesmo assim, esta foi mais uma oportunidade de treiná-la com petiscos e carinho, além de avisar aos homens que não falassem com ela”, conta.

Portanto, apesar de os primeiros meses de vida do cachorro ser a fase crucial, a socialização é constante. 

Além disso, conta a tutora, é preciso andar todo dia, afinal, o trabalho do cão é guiar. Segundo Jéssica, é necessário uma média de 4km por dia para atender a necessidade do cão-guia. 

Antes e depois de Zoé

“As pessoas me perguntam se eu preciso de um cachorro. Não, eu não preciso. Tudo que eu faço na minha vida, eu faço sem Zoé. Mas faço melhor com ela”, afirma a tutora.

“Também não precisamos de um celular de última geração, por exemplo. Mas buscamos recursos que melhorem nosso dia a dia. Sempre trabalhei, viajei, saí sozinha. Mas nunca caminhei pela rua à noite sozinha, por exemplo. Com Zoé, isso passou a acontecer. Ela me dá mais segurança para fazer as coisas”, declara. 

Jéssica diz que passou a ter muito mais autonomia e segurança para transitar em meio urbano, e também muito mais trabalho e responsabilidade. “É mais tranquilo viajar sem cachorro. Com cachorro, você precisa considerá-lo como alguém que depende exclusivamente de você. Se Zoé se exercita muito durante o dia e à noite está cansada, eu não saio mais, eu fico no hotel com ela”, avisa.

De fato, é preciso lembrar que não é somente o cão-guia que vai ajudar a pessoa. A pessoa é responsável pelo cão, trata-se de uma vida sob sua responsabilidade. 

Zoé também curte a vida

Desafios

Para Jéssica, cuidar da saúde e manter o bem-estar de sua cachorra é um grande desafio, mas que ela tira de letra. “Se eu vou viajar, me preocupo com o assento que vou escolher e se o ônibus está cheio; me preocupo onde vou sentar num restaurante; hoje vejo as coisas não só como condutora, mas também treinadora de um cão-guia. É mais cansativo, pois estou numa posição dupla”, diz, sempre atenta ao que é melhor para Zoé.

Com relação à mobilidade urbana, surpreendentemente, Jéssica enfrentou poucos obstáculos na cidade por andar acompanhada de um cachorro. Ela relata somente duas recusas de transporte por aplicativo em quatro anos. E uma vez, num supermercado, o segurança passou a segui-la pelo estabelecimento. Ao questioná-lo, o funcionário solicitou a carteira de vacinação da cachorra, que Jéssica apresentou pelo celular (em caso de solicitação pelo estabelecimento, o usuário do cão-guia deve apresentar o documento, mas não precisa ser físico). Depois disso, ela enviou email junto da carteira de vacinação digitalizada para administração do shopping onde fica o supermercado, para que fosse repassado aos lojistas. O constrangimento não se repetiu.

Outra situação ocorreu num shopping em Salvador, quando uma funcionária tentou impedi-la de entrar na praça de alimentação, mas após contato com a gerência, foi resolvido. 

Pela lei 11.126, a Lei do Cão-guia, “é assegurado à pessoa com deficiência visual acompanhada de cão-guia o direito de ingressar e de permanecer com o animal em todos os meios de transporte e em estabelecimentos abertos ao público, de uso público e privados de uso coletivo, desde que observadas as condições impostas por esta Lei.”

Alguns locais em que o cão-guia não pode entrar são os mesmos em que nem os humanos podem, como local de quimioterapia e radioterapia, sala de raio-x , e em locais de manipulação de alimentos (cozinha industrial). 

Mas, sem dúvidas, o maior obstáculo para um cão-guia é a interferência das pessoas que gostam de interagir com os cães na rua. “No começo eu ficava brava e apenas dizia que não podia tocar, nem conversar. Depois entendi que a informação traria mais benefícios, então passei a explicar às pessoas e educá-las sobre como agir ao encontrar um cão de trabalho”, conta Jéssica.

Muito além de trabalho

Jéssica e Zoé, relação de confiança e amor

Apesar de ser um cão de assistência, Zoé não vive no “liga/desliga”. É nítida a conexão entre a cachorra e sua condutora. O tipo de relação de todo cão, de trabalho ou não, merece ter com seu tutor.

Além de ter treinado Zoé, Jéssica atribui tal conexão ao fato de ter ido além disso com a cadela. “Não treinei apenas comandos de mobilidade urbana, passeamos juntas, deixo-a livre para farejar, faço enriquecimento ambiental, faço outros tipos de treino, que contribuem para o fortalecimento do nosso vínculo”, comenta.

Isso reflete no equilíbrio de Zoé nas situações por que passa, não só por ser treinada. 

“Eu não enxergo direito, mas eu entendo o olhar dela, estamos tão habituadas uma a outra, que não tenho receio de levá-la para qualquer lugar comigo.”

De forma geral, os condutores de cão-guia tratam o cão puramente como uma ferramenta de tecnologia assistiva, um cão de serviço, ou seja, quando estão em seu trabalho, o cão acompanha durante todo o tempo necessário no ambiente e na posição de guia,  apenas saindo dessa posição na hora do xixi e do cocô. Jéssica não pensa assim. Para ela, a saúde de Zoé vem em primeiro lugar.

Quando Jéssica começou a ir ao trabalho com Zoé, o setor de saúde ocupacional reconheceu a necessidade de bem-estar da cachorra e orientou que, todo dia, a jornalista levasse a cachorra para uma caminhada de 30 minutos durante o expediente, além dos momentos de atender as necessidades fisiológicas.

Aliás, foi pensando no bem-estar de Zoé que Jéssica optou por não levá-la diariamente consigo para o trabalho. Devido à natureza de sua atividade, que eventualmente precisa sair pelo campus da universidade em horários de sol a pino, ela percebeu que não faria bem a Zoé acompanhá-la em tudo. 

Zoé acompanhando a humana no trabalho

O que não fazer com um cão-guia

Por ser um cão de assistência e precisar manter o foco na tarefa que está realizando, o cão-guia não pode ser interrompido ou distraído por terceiros.

Então, se tem uma coisa que não podemos fazer, é interagir com o cachorro. É difícil porque, além de ser um trabalho bonito, os cães são lindos, dá vontade mesmo de acariciar. 

Mas é preciso se controlar e não interferir. Lembra que eles estão sempre em treinamento de socialização?

“Nenhum tipo de interação, falar, alisar, brincar, alimentar. Também não utilizo nenhum tipo de adorno em Zoé, como laços, pois dá margem para as pessoas interagirem”, orienta Jéssica.

E ela diz mais:

“Não permito usarem termos como cachorrinha, bebezinha etc. É cachorra, cadela ou Zoé. Enquanto falarmos no diminutivo, as pessoas não vão olhar para o cachorro com o respeito que deve ser dado à espécie, o que vale para qualquer cachorro, mas principalmente para os cães de serviço”, finaliza.

Fotos concedidas pela tutora Jéssica.